quarta-feira, 30 de março de 2011

Historias, aventuras e outros relatos - 3

UM MISTÉRIO



Tudo se passou durante uma actividade do nosso Grupo Pioneiro onde, à data, exercia funções na Equipa de Animação.
Estávamos em Sintra e fomos convidados a participar num jogo organizado pela chefia do Grupo 93 – Sintra, da Associação de Escoteiros de Portugal, que também nos acolhiam na sua sede, como muitas vezes o fizeram sempre com muita disponibilidade e amabilidade.
Aceitámos o convite dos nossos anfitriões e encontrámo-nos no local indicado: uma quinta situada paredes meias com o Palácio da Pena.
Aí, foram formadas equipas mistas de escuteiros e escoteiros (uma união que deveria acontecer com maior frequência e uma separação que nem deveria existir. Por vezes o laço do escutismo tem demasiadas pontas…) e deram início ao jogo que compreendia vários postos e provas a ultrapassar. Umas, após outra, as equipas recém-formadas foram partindo. Os postos eram assegurados por Dirigentes da AEP que já se encontravam nos locais.
Como não nos foi atribuído nenhum posto, eu e o Miguel Pereira decidimos acompanhar a última equipa do nosso Grupo que fazia parceria com a patrulha Coati, constituída exclusivamente por raparigas (pois na AEP – ou, pelo menos naquele Grupo, não existem equipas mistas). Seguimos com eles durante um bocado até ao momento em que correr, utilizar o corpo para abrir caminho por entre o mato ou rastejar se tornou estratégia de progressão no terreno, não por necessidade mas por mera opção.
Decidimos deixá-los a viver a sua demanda conjunta e tomámos um trilho paralelo que seguia a direito, plano. Talvez menos emocionante, à partida, mas que veio a revelar uma emoção muito diferente e deu origem a esta narrativa.
Engraçado como, uma pequena escolha, um pequeno desvio, uma decisão de um minuto nos pode conduzir a percursos tão curiosos e inesperados.
O trilho desembocava numa pequena clareira, de onde saía apenas mais um caminho. Nada havia a não ser um posto de transformação da EDP (que adiante terá alguma importância na história), num dos seus limites.
No centro, encontrava-se um carro estacionado. Assumindo que pudesse tratar-se de um posto do jogo, eu e o Miguel acercámo-nos da viatura que se encontrava fechada, com os vidros subidos e sem nenhum ocupante. Ou assim julgámos por não se ver vivalma no seu interior.
Contudo, uma aproximação ao vidro do lado do condutor veio mostrar-nos o contrário. Deitado sobre os dois bancos da frente estava alguém, imóvel, completamente coberto por aquilo que nos pareceu ser uma manta. No tablier, junto ao volante, uma dentadura postiça dava um toque final àquele cenário que começava a adquirir um tom sinistro.
No ar sentia-se o cheiro denso a diluente, ou alguma outra substância com características odoríferas semelhantes.
Tudo mais era silêncio.
Optámos por sair daquele local calma e silenciosamente, tomando o outro caminho existente, que se abria como um túnel sob a densa copa das árvores, desembocando numa estrada alcatroada. Ao chegar aí, virámos à esquerda, seguimos em frente até uma entrada que levava à estrada principal. Estávamos fora da quinta. Um pouco mais adiante, junto a um alto portão de barras de ferro, encontrámos os Noitibós e as Coatis, ainda do lado de lá, ainda em jogo.
De imediato, inquirimos os elementos da patrulha acerca da possibilidade de termos encontrado um posto de jogo, referindo a nossa descoberta e descrevendo o automóvel (recordo apenas que era branco, à excepção do capot, pintado de preto) que tínhamos deixado para trás, estacionado no interior da mata.
Responderam-nos negativamente. Não pertencia a nenhum dos seus Dirigentes.
Subitamente, ocorreu-me algo que me deixou inquieto e sobressaltado: teríamos estado perante uma tentativa de suicídio, por inalação de produtos tóxicos?
Talvez me tenha deixado levar demasiado pela imaginação, causada por toda aquela estranha ambiência e insólita situação. É possível. Mas a memória daquele cenário atrás descrito, aliado ao forte e intenso odor que infestava o ar ao redor da viatura tornava aquela hipótese plausível.
Partilhei a minha inquietação com o Miguel e decidimos regressar e averiguar.
Entretanto, o manto escuro da noite começava a cobrir o céu, tornando tudo mais frio e sombrio…
Retomámos à estrada, desta vez seguidos por Noitibós e Coatis, com um nó de angústia a apertar-se-nos na garganta à medida que nos aproximávamos do local e de uma possibilidade que não desejávamos, de forma alguma, confirmar. Não queríamos ser actores involuntários de tal peça, mas a consciência impelia-nos a prosseguir.
Pedimos aos elementos que nos acompanhavam que aguardassem ocultos entre a vegetação. Não queríamos expô-los ao que quer que fossemos (re)encontrar. Informámo-los resumidamente acerca das nossas suspeitas e como medida de segurança deixámos-lhes o único apito que tínhamos e que deveriam utilizar em caso de emergência.
- E se vos acontecer alguma coisa, como é que nos avisam? – perguntou uma Coati quando lhe entreguei o apito.
- Descansa. Se nos acontecer algo gritamos e vocês de certeza que nos ouvem – respondi em tom de gracejo, ainda que com um fundo de verdade na minha resposta. Admito que estava um tanto assustado com a mera possibilidade de acontecer, ou ver, algo não desejado.
Deixámo-los para trás. Sozinhos avançámos pela escuridão do túnel que se formava sob a densa folhagem das árvores, mais negro que antes.
Durante esse breve período desejei que a clareira estivesse vazia. Mas não estava.
O carro continuava lá estacionado!
Entretanto, o manto da noite tinha coberto completamente o céu. Frio, escuridão e silêncio… Era o momento.
Contornámos a viatura e detivemo-nos a cerca de quatro passos de distância da janela oposta à do condutor.
O Miguel tirou do bolso uma lanterna, acendeu-a e dirigiu o foco de luz para o vidro. Foi então que, diante dos nossos olhos se começou a desenrolar a cena mais bizarra e assustadora desta narrativa. Senti o sangue gelar-me nas veias e o coração palpitava-me no peito ao ritmo da estupefacção e da incredulidade. Apertei o cabo canivete que trazia aberto no bolso do casaco, mais do que como forma de controlar os nervos, do que por protecção, e mantive o olhar direccionado para algo que ainda não estava a compreender.
Por detrás do vidro surgiu um rosto de homem; lívido; medonho; emoldurado por um cabelo negro que lhe caia pelos ombros e sob a franja uns olhos esbugalhados fitavam-nos e faziam os nossos abrir de espanto.
Após o rosto, ergueu-se o restante corpo, até ficar sentado. Nesse momento o espanto aumentou. Além do corte de cabelo feminino, o homem envergava uma túnica preta transparente, através da qual se podia ver um soutien da mesma cor que suportavam uns seios, igualmente femininos!
O Miguel, desviou o foco de luz da lanterna. De imediato disse-lhe que lho voltasse a apontar para os olhos, de forma a desorientar e a turvar a visão do homem. O seu rosto e tronco voltaram a ficar iluminados.
De soslaio vi o Miguel a olhar ao nosso redor, certificando-se de que mais ninguém estava ao nosso redor.
Entretanto, no interior do carro, o homem levou a mão ao cabelo e, subitamente, fez deslizar para o lado o cabelo deixando a nu uma cabeça completamente rapada.
Mais uma vez o foco de luz se desviou como que a querer poupar o nosso olhar a semelhante visão. Era como se o desviar da lanterna correspondesse a um pestanejar que os nossos olhos, demasiado espantados, tivessem deixado de conseguir fazer.
Mais uma vez apelei ao Miguel que redireccionasse a luz para o ser à nossa frente.
Visivelmente desorientado, o homem tentava baixar o vidro do carro. Quando, finalmente o conseguiu, começou a balbuciar algumas palavras imperceptíveis, pigarreando para aclarar a voz. Por fim, conseguiu dirigir-nos a palavra, perguntando se éramos guardas do parque (não estávamos fardados; apenas tínhamos o lenço).
Respondi prontamente e com a voz mais firme que consegui (não sei como) que sim e que ele não podia estar ali.
O nosso interlocutor pediu desculpa e disse que sairia de imediato, justificando que estava ali a descansar. Pois dizia tratar-se de um técnico da EDP e que tinha ido ali para arranjar o Posto de Transformação (atrás mencionado) e que depois ficou ali a descansar um pouco, já que em casa não conseguia fazer porque os vizinhos faziam muito barulho e punham a música alta. Morava em Mem Martins, disse.
Para provar, quis mostrar documentos de identificação. Recusei. Até porque isso me obrigava a uma aproximação à porta do automóvel. E aqueles quatro passos de distância pareceram-me bem mais seguros.
Reforcei que tinha de sair dali. E assim terminou o diálogo. O Miguel apagou a lanterna e encaminhámo-nos para o túnel que se abria sob a folhagem das árvores. Atrás de nós ouvimos o carro a ser ligado e a deslizar sob as folhas e galhos que cobriam o solo e os faróis iluminaram o caminho.
Por precaução, saímos do trilho e esperámos que passasse por nós. Só então retomámos o percurso que nos conduziu aos Noitibós e Coatis que nos aguardavam e que não acreditaram na nossa estranha narrativa.
Talvez também não acreditem. Mas posso-vos assegurar que assim se passou este estranho mistério numa estrada de Sintra!

Assina : Lobo Negro

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